"Eu perseguia aquele rosto em busca de um sentido que a noite me abrisse, de uma verdade original e absoluta, mas a sua expressão permanecia intacta, na vertigem dos olhos agora semicerrados num abismo infinito. (...) Tomado por um impulso que ainda hoje não sei explicar, peguei-lhe num braço e levei-a devagar para fora dali: contra a minha expectativa, ela cedeu e deixou-se arrastar até à escada, que subimos sem dificuldade. (...)
O céu ganhara a cor arroxeada que antecede a aurora e debruçámo-nos alguns instantes, absortos na contemplação do rio e de duas majestosas gruas que me despertaram para o peso maciço da realidade. (...)
... ela sentou-se mesmo junto à beira da varanda, virada para fora, com as pernas suspensas no ar e as mãos agarradas ao gradeamento, que era aberto em baixo e lhe deixava espaço suficiente para escorregar. Estava na posição arriscada de quem prepara um salto no vazio - bastaria que uma das mãos se soltasse e...
Adverti-a dos perigos daquela altitude, mas obtive apenas mais um benévolo sorriso, onde podia ler um misto de orgulho e comiseração que por um instante me incomodou. Como eu insistia em puxá-la para cima, ela irrompeu numa gargalhada líquida e disse devagar, num tom estranhamente solene mas talvez adequado às circunstâncias:
- Quero olhar para a morte de frente e sem medo. Preciso de me habituar a ela, de a ver como uma velha amiga que me convida a entrar em sua casa. Não deve ser mais do que isso."
Fernando Pinto do Amaral in Área de Serviço e outras histórias de amor
("Discoteca")