Algures perdida entre os livros, folhas e folhas com tanto e com nada, assistindo ao louco desfile de matéria ela sentia-se desanimada. Questionava aquilo que sabia, as suas capacidades, atormentava-se com questões sem resposta, com uma insegurança que só lhe dificultava o caminho.
Ao olhar o sol que irradiava lá fora (tão distante), lembrou-se dele. Como queria que ele ali estivesse agora. Como precisava do calor dos seus braços, do aperto forte e consolador que ele lhe dava, das certezas com que a inundava.
Esse era outro problema... Já procurara mil vezes entender o motivo daquela paixão. Como era possível que ele tivesse aquele efeito sobre ela. De repente, alguém lhe puxara o tapete da rigidez e da lógica... E, agora, ela tinha dificuldades em levantar-se. Precisava dele e tinha, cada vez mais, a (dolorosa) consciência disso. Como? Não sabia...
Até porque no fim chegava sempre à incontornável resposta, certamente a menos científica de todas, mas também a mais puramente deliciosa: ela gostava dele. O amor... sem regras, convenções, lógicas ou motivos. E como era bom poder entregar-se a esse sentimento sem pensar. Saber, apenas o doce saber, que podia contar sempre com ele, que ele estaria lá quando ela mais precisasse. O sentir-se compreendida, como por ninguém mais, em cada gesto dele, em cada palavra, ou até em cada surpresa que ele lhe fazia.
A consciência de que ele também precisava dela...
Porque junto dele todas as leis físico-químicas eram violadas e ela sentia que podia dissolver-se na textura da sua pele...
Olho-te nessa cama a que me habituei, a que te habituaste... Curioso como as paredes brancas e austeras, os corredores estreitos de um hospital nos podem parecer tão familiares. Como podem ser quase a nossa casa. Como os diversos profissionais de saúde que nele desfilam, médicos dedicados, enfermeiros atarefados ou auxiliares apressados podem ser quase como família ou amigos. Tudo uma questão de hábito. O tempo como motivo.
Passaste aqui demasiado tempo. Os dias arrastam-se e vêem-te morrer lentamente. Obrigam-me a ver-te morrer lentamente, espectadora forçada a este teatro da degradação humana. És cada vez mais incapaz, mais limitada, cada vez menos gente. Queria despedir-me já de ti porque receio que amanhã, quando às 15h como sempre cá voltar, já cá não estejas. Porque vivo e me debato com essa constante incerteza. O medo do que fica por dizer. Mas, sobretudo, a saudade antecipada da tua ausência mãe. Minha mãe. As tardes no hospital repetem-se e, perante a tua imobilidade, o silêncio a que te confinas, eu dedico-me apenas a olhar-te nessa paz enganadora. Reconstruo os nossos momentos de alegria e felicidade. Sim, nesse tempo longínquo em que nos julgávamos inatingíveis. Nessa época em que o nosso amor parecia capaz de tudo, qual barreira protectora que nos distancia de todos os males deste mundo. Recordo-me que quando falávamos uma com a outra, como amigas que sempre fomos, quando nos abríamos verdadeiramente, confessávamos os nossos segredos, revelávamos os nossos pecados (ou seria ao contrário? confessar pecados e revelar segredos parece fazer mais sentido, agora que já nada tem sentido!) todo o restante mundo deixava de existir. Éramos. Nós. As duas, apenas as duas. Mutuamente suficientes. Encontrávamos força uma na outra. Só queria me envolvesses outra vez nesses teus braços, eterno refúgio... e que me fizesses de novo menina, tua princesa.
Hoje, porém, o mais próximo que existe disso é este quarto. Quando fecho a porta deste fúnebre quarto. Ficamos as duas. Sós. Ou nem por isso, já que existe sempre um ou outro paciente temporariamente deixado nas camas ao lado. Um ou outro gemido que interrompe os nossos actuais (cada vez mais curtos e menos frequentes) diálogos. Ou serão monólogos? Quando deixaste de falar? Quando me deixaste a falar sozinha? Não sei, ou não quero saber.
A lei da vida esclarece que "é assim mesmo". Os pais devem gerar os seus filhos, vê-los crescer, criá-los e educá-los, dar-lhe as asas e deixá-los voar. E, depois, no fim, devem partir primeiro que as suas crias. Os mais velhos devem morrer primeiro. E devemos estar preparados para isso. Devemos encontrar outras pessoas na nossa vida, ser felizes ao seu lado, encontrar outros motivos para viver. Encontrei essas pessoas, creio que tive sorte. Porém, com o passar do tempo, ou com o apertar dele (creio que é mais apropriado), angustia-me a certeza derradeira: nada nem ninguém poderá substituir-te. A tua partida deixará uma enorme fenda, uma ferida difícil de sarar. Um vazio. Vácuo. Ausência.
O que me restará? Tentar cobri-lo, tapá-lo, escondê-lo, fazê-lo curar e fechar. Sem sucesso na melhor das hipóteses.
A enfermeira abre de rompante a porta e volta a implicar com o meu (mau) hábito de a fechar. Ignoro-a. Pouco me importa aquilo que diz. Queria que tu dissesses qualquer coisa, mãe. Que fosse teu o ruído que sai da boca daquela farda azul e branca. Queria que fossem tuas as palavras. E não são. Insistem em não ser tuas.
Olho o relógio e percebo que são horas. A visita terminou. Mais uma. Como as outras. Levanto-me do banco que já tem a minha forma, dou-te um longo beijo e dirijo-te um último olhar, para recordar-te eternamente. Saio com a mesma incerteza de todos os dias. E sei que amanhã voltarei, percorrerei os velhos corredores apressadamente até chegar ao teu quarto... abrirei, entre o ansiosa e o hesitante, a porta com medo. Medo de que tu possas simplesmente já não lá estar. Até amanhã, mãe.
P.S. Depois de todas as questões levantadas por este post, achei prudente esclarecer que o mesmo não passa de pura ficção (felizmente!), como tantos outros que aqui publico. Agradeço toda a preocupação e apoio que me foram dirigidos (tanto por amigos, como por leitores) e lamento a confusão causada.
Cumprimentos, Vânia Caldeira
Ouvia as gargalhadas dos filhos no piso superior e sorria... Um sorriso tímido e comprometido, resultado de um pensamento que a assaltava constantemente e não a deixava descansar.
Era casada há quase 20 anos e vivera sempre um casamento perfeito. O sonho de qualquer mulher. Apesar do seu perfil determinado e ambicioso, temperado com laivos de um feminismo apurado, casara-se cedo, movida por um amor seguro e frutífero. Recordava agora as inúmeras dúvidas que tivera nessa época: na verdade, se não fosse pelas pressões do namorado (em parte resultado de alguma insegurança e medo de a perder) nunca se teria casado naquela altura. Esperaria alguns anos. Hoje, porém, não se arrependera dessa cedência. Esse passo fizera-a crescer como pessoa mas, sobretudo, como mulher, dera-lhe a responsabilidade e a maturidade de uma relação séria e "para a vida".
Claro que não cedera em tudo. Uma vez casados, não deixou que ele lhe alterasse os seus planos: os filhos teriam mesmo de esperar. Queria triunfar na sua carreira profissional e não havia espaço para nada mais. Sim, admitia, sempre tivera muito de egoísmo na sua personalidade. E também de ambição. Mas eram essas características que a distinguiam da maioria das mulheres e a tornavam especial. Aliás, segundo o próprio marido, eram esses traços que o tinham feito escolhê-la. Sim, ainda hoje ele acreditava que a tinha escolhido. Continuava a achar que ela se limitara à passividade de ficar à espera que ele a seleccionasse entre as demais candidatas. Ela? Não se importava com isso. Segura dos seus dotes e da eficiência do jogo de sedução que praticara com ele, preferia não interferir com a débil auto-estima masculina.
Mas os filhos acabaram por vir: o primeiro quando ela tinha 37 anos e o segundo 3 anos mais tarde, já no limiar do seu relógio biológico, segundo os médicos. Agora com 3 e 6 anos, os seus filhos brincavam alegremente no andar de cima, indiferentes aos dilemas da mãe.
Vivia um casamento perfeito: o marido ideal, dedicado e leal, colaborador nas tarefas domésticas, dado à família mas, sobretudo, com uma adoração por ela inabalável, mesmo apesar do passar dos anos e do aparecimento das primeiras rugas e dos primeiros cabelos brancos, malditos registos da idade que não perdoam.
E, porém, apesar de tudo o que ele sempre lhe deu, apesar deste conto de fadas que ele lhe criou, apesar do elevado nível de vida que tinham... agora ela sentia que chegara a hora de pôr um ponto final.
Não tinha motivos para ser infeliz e, no entanto, já não conseguia ser feliz. Talvez fosse a monotonia de uma relação prolongada, talvez fosse a sua excessiva exigência, o seu não-conformismo. Faltava-lhe qualquer coisa, não se sentia completa com a sua vida actual. Aquele casamento simplesmente já não era suficiente. E, depois de alguns meses de reflexão e de frustração, percebera que não podia prolongar a situação. Tinha de abrir o jogo: queria o divórcio.
E odiava-se por isso! Por saber como o marido que a adorava iria reagir, por não ter um único motivo a apontar-lhe... a culpa simplesmente não era dele.
Mas, mais do que qualquer outra coisa, temia ter de confrontar os olhares suplicantes e lacrimejantes dos filhos quando lhe perguntassem o porquê... e ela simplesmente não teria uma resposta.
Ouviu então a porta de casa bater, anunciando a chegada do marido e, com ele, o momento que mudaria a sua vida para sempre.
Gosto da forma doce como me tocas. Gosto da cor das nossas peles, juntas. Gosto das tuas mãos geladas, como as minhas. Gosto da suavidade do teu cabelo, da profundidade verde dos teus olhos.
A vida está sempre a pregar-nos partidas. Tu foste mais uma... Mas particularmente especial.
Adoro as tuas propostas destemidas e os teus convites irrecusáveis. Adoro a forma como carinhosamente me tratas por "sôtora"...
Adoro as tuas gargalhadas ou as tuas tentativas (frustradas) de me ensinar a tua área.
Adoro o teu perfume, o cheiro da tua pele, o sabor do teu pescoço, a segurança dos teus braços... Adoro o teu metro e oitenta e quatro...
Quem diria...
Acima de tudo adoro os teus beijos, demorados e profundos, recheados, completos, intensos... E ainda as pequenas carícias com as quais demonstras toda a tua atenção e carinho: o doce beijinho na testa ou no cabelo.
É curioso como quando achamos que sabemos o que vamos ou desejamos encontrar no final de determinado caminho, a vida nos confunde, nos engana e surpreende: e mostra que algo muito diferente nos espera.
Adoro o sorriso ingénuo e feliz que voltaste a colocar nos meus lábios. Isso é, sem dúvida, o que mais adoro!
Explica-me o significado dos teus sinceros risos e sorrisos a meu lado. Faz-me compreender porque é que só ao meu lado pareces extremamente feliz. Desvenda-me os segredos escondidos nesses olhos azuis, cor do céu e do mar.
Há coisas que simplesmente não percebo. E outras que compreendo tão bem: que fomos feitos um para o outro, que estamos sempre em perfeita sintonia, que sou tão feliz ao teu lado, que o resto do mundo parece desaparecer por momentos... enquanto estamos sós, algures na dimensão de um outro mundo só nosso!
Sim, também me podes explicar porque tens ciúmes dos outros, porque fazes cenas aparentemente injustificáveis e que roçam (quando não ultrapassam mesmo) o ridículo ou porque não me largas.
Mas, antes de qualquer outra coisa, explica-me apenas porque não dás o passo mais importante de todos, aquele que podia mudar a minha vida e a tua... antes que seja demasiado tarde, antes que tenhamos perdido a nossa oportunidade. Explica-me, que às vezes, não te entendo!