Para sonhadores... Deixem-se levar... O blog mudou de cores, mas os sonhos são os mesmos...

04
Mar 08

 

Não. Ele já decidira. Naquela noite não iria sair. Sabia que os amigos tinham insistido imenso para que fosse, mas sentia-se um fardo inconveniente e descartável, e temia mesmo que a insistência dos amigos não passasse de um sentimento de responsabilidade ou uma imposição moral do "politicamente correcto".

Toda a sua vida se sentira diferente. Não, não era um mutilado de guerra, que pudesse aparecer na televisão para dizer como fora nobre o seu papel algures, num campo de batalha. Também não era o resultado dos excessos de velocidade nas estradas ou dos abusos de álcool... nem se podia refugiar num sentimento de culpa que não tinha, que simplesmente não era dele. Na verdade, por algum motivo que não conseguia compreender, um erro divino na sua concepção condenara-o eternamente a essa dura realidade - a da diferença. E de que forma: nascera sem membros, com cotos em vez de braços ou pernas. Fora motivo de terror para a família, à medida que o visitavam no berço, ainda no hospital.

Já tinha ouvido tão bonitos e filosóficos discursos acerca da realidade de "ser diferente", mas proporcionalmente vazios e fúteis. Não é que não acreditasse que quem os tecia tinha boas intenções, porque até acreditava. No conhecimento que travara com várias instituições ficara espantado com a garra com que certos indivíduos defendiam as causas em que acreditavam, lutavam contra o preconceito e a indiferença da sociedade. Mas, na verdade, não acreditava que eles compreendessem verdadeiramente o que significava ser diferente.

 

 

Eles limitavam-se a defender uma causa nobre e, por isso, até eram bem vistos devido à grandeza daquilo em que acreditavam.

Ele, ao contrário de um reconhecido idealista, era apenas mais um desses seres diferentes, objecto das nobres lutas alheias, que diariamente tinham de suportar aquele olhar, aquele maldito e cortante olhar dos outros, ditos "normais". E essa realidade era invariável... Por isso, todos os outros eram culpados, independentemente das suas motivações ou dos seus valores morais.

Sempre que desfilava na rua sentia-se atravessado por esses olhares. Uns olhavam-no com pena. E esse olhar piedoso destruía-o, diminuía-o, tornando-o insignificante. Outros, com o arisco olhar da curiosidade, tornavam-no uma verdadeira aberração. E, outros ainda, apenas guiados pelo preconceito, olhavam-no com o esgar da superioridade, estigmatizavam-no, faziam-no fechar-se em si próprio, no seu mundo solitário e na sua crescente revolta.

Como era possível que certas pessoas dissessem que nada era pior do que a indiferença, quando ele seria capaz de tudo para construir um pouco mais de indiferença nesse seu mundo, apagando a piedade, a curiosidade e o preconceito dos altivos olhares dos outros, que o condenavam a ser, para sempre, um ser diferente.

A decisão estava tomada. Nessa noite não sairía, não seria um peso para mais ninguém, não suportaria os olhares dos outros. Não, nessa noite...

publicado por Vânia Caldeira às 09:37

02
Mar 08

  

Só agora percebo que errei e só agora me arrependo. Lamento não ter arriscado, não ter investido mas, sobretudo, lamento não ter percebido.

Nunca percebi a forma especial como me olhavas ou nunca quis perceber. Sempre tive medo que não soubesses verdadeiramente o que querias, quando quem afinal não o sabia era eu.

Nunca compreendi como me sentia bem a teu lado, o quanto a tua presença era importante para mim. Ao ter medo de perder a tua amizade, acabei por te perder a ti!

E só agora, que te perdi, tudo é tão dolorosamente claro. Apenas agora, que não te tenho, compreendo verdadeiramente a falta que me fazes. O vazio que ficou ao perder os teus óbvios gestos de carinho, as nossas regulares saídas ao fim de semana, a tua doçura, as tuas ideias loucas, a tua energia e vivacidade, o modo como me idolatravas, ... Como tenho saudades da forma doce e única como me tratavas por "boneca". Com o excessivo gasto de expressões como "linda", "querida", "menina", "princesa"... sempre foste diferente de todos os outros, sempre foste especial - nunca ninguém me tratou tão carinhosamente de "boneca".

Eu sei agora que fui a boneca encantada dos teus sonhos, dos teus desejos... Boneca de porcelana num pedestal que tu próprio criaste, boneca frágil da qual desejaste cuidar, acarinhar, adorar...

Não posso esperar que o tempo volte atrás e me dê uma segunda oportunidade. Mas posso garantir-te que, se voltasse, desta vez eu arriscaria, perderia qualquer medo ou hesitação e embarcaria nesta aventura, na nossa aventura. Desta vez, a história seria escrita de outra forma. Mas talvez um dia... quem sabe? Afinal, as bonecas têm o direito de sonhar, não têm?

publicado por Vânia Caldeira às 09:05

08
Fev 08

 

Naquela tarde chuvosa, que se parecia compadecer dela, ela chorava... Grossas lágrimas magoadas escorriam pelo seu belo rosto, caíam uma a uma sobre a colcha da cama...

Chorava por amor. Amava-o demais para conseguir pensar noutra coisa. Chegara a um ponto tal, que não era capaz de começar a ler um livro sem que rapidamente as letras deixassem de fazer sentido como um todo, ficassem vazias de significado e apenas a impelissem a flutuar longe daquelas páginas, no seu próprio livro interior, livro de memórias felizes, simultaneamente dolorosas e dóceis... Contemplando a chuva pela janela, recordava cada sorriso dele, cada gargalhada harmoniosa partilhada por ambos, cada gesto de carinho, cada palavra suspirando preocupação e ternura. Lá fora, a chuva...

Perdida nos seus pensamentos, ela perguntava-se como era possível que só ele não visse. Todos os colegas de ambos se apercebiam do clima mútuo que pairava entre os dois, da perfeita hamonia que viviam quando estavam juntos, de como eram felizes um ao lado do outro. Mas só ele parecia não querer ver. E por isso a alma dela estava preenchida de uma chuva interior, que a varria e a deixava nua, vulnerável, dobrada sobre si mesmo e sobre o seu sofrimento. Coisa insignificante, longe da linda rapariga confiante e ambiciosa que outrora fora.

Apesar de ele nunca ter mencionado o assunto (e porque não o teria feito?!), ela sabia que ele tinha namorada. Perante essa enorme dor que a fazia sucumbir, decidiu convencer-se de que era, muito provavelmente, inferior à tal rapariga. A outra seria mais bonita, mais inteligente, mais interessante, mais perfeita. Ele certamente gostava da namorada. Mas essa falsa consciencialização não a tornava imune à dor nem ao sofrimento e as lágrimas impiedosas continuavam a distorcer-lhe a face, tal como a chuva continuava a bater, cada vez com mais força, no vidro molhado da sua janela.

 

 

O que ela não sabia, nem nunca iria saber, é que a alguns quilómetros da casa dela, ele também se sentia miserável. Achava-se desprezado, fizera tudo o que pudera - achava ele - para que ela olhasse para ele, se aproximasse dele e tudo o que conseguira, pensava olhando a dureza da chuva lá fora, era a sua amizade. Era certo que ele tinha namorada, tão certo como o facto de que a monotonia em que o seu namoro o aprisionara não era paixão e muito menos amor: era apenas a força do hábito a impôr-se, um estúpido comodismo a disfarçar o enorme medo da solidão.

Mas estava disposto a terminar o namoro, a acabar tudo para poder ser feliz ao lado dela... só precisava da certeza, de um sinal de que era correspondido... um pequeno gesto, uma palavra... qualquer coisa que lhe desse força para fazer aquilo que ele mais desejava. Não! Ele tinha de a esquecer. Ela era apenas sua amiga e, por mais que isso fosse doloroso, teria de se conformar com essa realidade. Teria de se habituar a vê-la como uma grande amiga, tal como se habituara às repetidas e desinteressantes tardes de domingo no sofá dos seus sogros. Pelo menos, era mais fácil do que romper um namoro de dois anos, ter de explicar o que se passava à namorada e, ainda por cima, enfrentar os pais da mesma, que sempre o trataram tão bem. Tudo isto correndo o risco de levar um "não". Achou que a sua felicidade não valia o esforço...

 

 

Eles não sabiam, nem poderiam saber, que partilhavam os mesmos sentimentos, não sabiam que padeciam dessa mesma dor injustificada, desnecessária... Tudo se resolveria apenas com uma pequena dose de sinceridade. Mas não! Ambos eram demasiado envergonhados para assumirem o que sentiam. Não, na verdade, não era uma questão de vergonha, mas de orgulho! O orgulho que lhes barrava o caminho para a felicidade... por falta de coragem para trepar esse muro, por falta de auto-estima para acreditar que era possível e pelo estúpido medo de ficar só.

Passariam anos, cada um deles construíria com sucesso a sua carreira profissional, formariam família e teriam uma vida estável. A estabilidade que se pinta com os mesmos tons da monotonia e das certezas absolutas. Uma vida igual à de tantas outras pessoas. Um amor, apagado, ou o que resta dele - meras cinzas que já arrefeceram -, um amor murcho mas garantido, tido como certo. Sem riscos, sem medos, sem surpresas...

O que eles não podiam prever, nessa vida supostamente perfeita, é que nunca se esqueceriam. Restaria sempre, em ambos, uma pequena mágoa, um "e se..." sonhador e castrador, que perdera qualquer oportunidade de se concretizar, apenas devido ao medo, à cobardia e ao orgulho.

publicado por Vânia Caldeira às 14:48

03
Fev 08

 

No silêncio da noite escura olhei-te... Lambi com as minhas córneas cada traço do teu rosto, cada pequeno sinal, senti sem tocar o calor que emanava da tua pele. Pesquisei a sua textura, ora suave como a seda, ora espessa, rude e forte. Percorri as linhas bem delineadas do teu tronco, semelhante a um mapa, onde me posso perder ou encontrar.

As tuas pálpebras cerradas, sob a luz do luar que teimava em entrar pela janela, davam-me a tranquilidade de uma eternidade segura, davam-me a possibilidade de te obervar em segredo, de te conhecer profundamente enquanto dormias...

Tinhas um temperamento complicado, sempre tiveste... Ora doce e meigo, atencioso, preocupado, ora domado pela revolta, indignação sem limites, egoísta... Nunca fora fácil estar contigo e, no entanto, eu sempre quisera estar a teu lado, beber desse temperamento. Mas repentinamente tudo mudou...

Ao olhar-te, sob o véu da noite escura, percebi que eras um homem quase perfeito. O homem que muitas mulheres desejariam ter, possuir... Também compreendi o quanto me amavas, do teu modo desajeitado, qual criança que dá os primeiros passos, que começa a caminhar.

Percebi que eras um óptimo homem. Apenas não eras homem para mim.

Talvez a culpa fosse tua, do teu temperamento intempestivo e inconsequente, da tua completa ausência de sonhos a realizar, ideais em que acreditar, do teu egoísmo que me excluía constantemente desse universo só teu.

Talvez a culpa fosse minha, da minha intransigência, da imagem perfeita de um homem que criei e procuro a meu lado. Compreendi que não eras homem para mim.

No silêncio da noite escura, levantei-me com a leveza de uma bailarina, dei-te um último beijo . talvez de pena, talvez de carinho - e saí. Antes de fechar a porta, olhei-te uma última vez. E soube que era para sempre. Eras um homem quase perfeito. Simplesmente o "quase" não era suficiente.

publicado por Vânia Caldeira às 14:57

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