“Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de Verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. Olho essa jarra, essas flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens. No chão da velha casa a água da lua fascina-me. Tento, há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face última das coisas e ler aí a minha verdade perfeita. Mas tudo esquece tão cedo, tudo é tão cedo inacessível. Nesta casa enorme e deserta, nesta noite ofegante, neste silêncio de estalactites, a lua sabe a minha voz primordial. (...) ... esta verdade que me queima quando vejo o absurdo da morte, se pretendo segurá-la em minhas mãos, revê-la nas horas do esquecimento, foge-me como fumo, deixa-me embrutecido, raivoso de surpresa e de ridículo... (...) Conheço-me o deus que recriou o mundo, o transformou, mora-me a infinidade de quantos sonhos, ideias, memórias..."
Vergílio Ferreira
in “Aparição”