
Aquela notícia deixara-a de rastos. Mais do que uma notícia, uma verdadeira sentença sobre a sua vida. Impassível. Ouvira-a, procurara percebê-la. Mas nestes assuntos nunca há compreensão possível. Apenas aceitamento e consciencialização. Tarefa árdua.
Nunca desejara muito da vida. Os sonhos de infância foram poucos e rapidamente dissipados com o avançar dos anos. Ao olhar para a sua vida e a sua atitude perante a mesma, considerar-se-ia uma mera espectadora. Nunca fizera nada para mudar o seu destino. Se é que essa entidade existia… Limitara-se a sobreviver. Viver cada dia, esquecendo a bênção de que se tratava.
Agora pensava em tudo o que poderia ter feito: e isso doía-lhe profundamente. Todos os planos que poderia ter traçado, todas as causas que poderia ter abraçado, toda uma vida que poderia realmente ter vivido. Pensava nos amigos que esquecera algures, num determinado ponto da vida. Recordava todos os projectos que abandonara, como se de lixo se tratasse.
Nunca acreditara em nada. Nem nela mesmo, quanto mais num qualquer ser superior. Hoje, mais do que nunca, desejava ter uma fé inabalável, capaz de a levar a acreditar nos mais estranhos impossíveis. Afinal essa parecia ser a réstia de esperança e, sobretudo, de paz de outras pessoas na sua condição.
Olhando a fotografia dos três filhos que guardava passivamente na carteira percebia a ausência de sentido da sua vida. Podia ter sido muito mais para eles. Podia ter-lhes dado muito mais. Podia ter sido uma mãe a sério. Mas sempre rejeitara esse papel.
Agora era tarde demais. E, no entanto, só agora imaginava todas as tardes desperdiçadas, as idas ao cinema que ficaram por concretizar, as conversas que nunca aconteceram por falta de tempo, … Por isso apenas conseguia recordar a indiferença na voz dos filhos, dos seus filhos, quando diziam “mãe”. Como se dissessem qualquer outra coisa como “nada”. Nenhum significado, nenhum sentimento.
Nada fizera no passado que lhe garantisse uma vida feliz junto das pessoas que mais a amaram. E como a amaram. Como se dedicaram a fazê-la feliz, com pequenas surpresas, com lindos gestos. Amaram. Sem serem correspondidas. Porque ela simplesmente nunca tivera tempo para elas. Achara sempre que iria haver um amanhã. Esta atitude egoísta culminara num divórcio inevitável, numa total ausência de círculo de amigos, numa odiável fama no emprego e no afastamento dos filhos. Agora que o futuro lhe fora roubado, um adenocarcinoma terminal no esófago era o ponto final na sua história.
E como era irónico: nunca tivera dado tanto valor à vida, nunca desejara tanto viver, como no momento em que ouvira aquele diagnóstico fatal da boca de um médico indiferente. Indiferente como ela própria. Perante os outros e perante a vida. Restava-lhe apenas morrer. Algo a que, embora sem saber, já se habituara em vida.