Ouvia as gargalhadas dos filhos no piso superior e sorria... Um sorriso tímido e comprometido, resultado de um pensamento que a assaltava constantemente e não a deixava descansar.
Era casada há quase 20 anos e vivera sempre um casamento perfeito. O sonho de qualquer mulher. Apesar do seu perfil determinado e ambicioso, temperado com laivos de um feminismo apurado, casara-se cedo, movida por um amor seguro e frutífero. Recordava agora as inúmeras dúvidas que tivera nessa época: na verdade, se não fosse pelas pressões do namorado (em parte resultado de alguma insegurança e medo de a perder) nunca se teria casado naquela altura. Esperaria alguns anos. Hoje, porém, não se arrependera dessa cedência. Esse passo fizera-a crescer como pessoa mas, sobretudo, como mulher, dera-lhe a responsabilidade e a maturidade de uma relação séria e "para a vida".
Claro que não cedera em tudo. Uma vez casados, não deixou que ele lhe alterasse os seus planos: os filhos teriam mesmo de esperar. Queria triunfar na sua carreira profissional e não havia espaço para nada mais. Sim, admitia, sempre tivera muito de egoísmo na sua personalidade. E também de ambição. Mas eram essas características que a distinguiam da maioria das mulheres e a tornavam especial. Aliás, segundo o próprio marido, eram esses traços que o tinham feito escolhê-la. Sim, ainda hoje ele acreditava que a tinha escolhido. Continuava a achar que ela se limitara à passividade de ficar à espera que ele a seleccionasse entre as demais candidatas. Ela? Não se importava com isso. Segura dos seus dotes e da eficiência do jogo de sedução que praticara com ele, preferia não interferir com a débil auto-estima masculina.
Mas os filhos acabaram por vir: o primeiro quando ela tinha 37 anos e o segundo 3 anos mais tarde, já no limiar do seu relógio biológico, segundo os médicos. Agora com 3 e 6 anos, os seus filhos brincavam alegremente no andar de cima, indiferentes aos dilemas da mãe.
Vivia um casamento perfeito: o marido ideal, dedicado e leal, colaborador nas tarefas domésticas, dado à família mas, sobretudo, com uma adoração por ela inabalável, mesmo apesar do passar dos anos e do aparecimento das primeiras rugas e dos primeiros cabelos brancos, malditos registos da idade que não perdoam.
E, porém, apesar de tudo o que ele sempre lhe deu, apesar deste conto de fadas que ele lhe criou, apesar do elevado nível de vida que tinham... agora ela sentia que chegara a hora de pôr um ponto final.
Não tinha motivos para ser infeliz e, no entanto, já não conseguia ser feliz. Talvez fosse a monotonia de uma relação prolongada, talvez fosse a sua excessiva exigência, o seu não-conformismo. Faltava-lhe qualquer coisa, não se sentia completa com a sua vida actual. Aquele casamento simplesmente já não era suficiente. E, depois de alguns meses de reflexão e de frustração, percebera que não podia prolongar a situação. Tinha de abrir o jogo: queria o divórcio.
E odiava-se por isso! Por saber como o marido que a adorava iria reagir, por não ter um único motivo a apontar-lhe... a culpa simplesmente não era dele.
Mas, mais do que qualquer outra coisa, temia ter de confrontar os olhares suplicantes e lacrimejantes dos filhos quando lhe perguntassem o porquê... e ela simplesmente não teria uma resposta.
Ouviu então a porta de casa bater, anunciando a chegada do marido e, com ele, o momento que mudaria a sua vida para sempre.