"Eu lembro-me do que te disse sobre as responsabilidades. Mas não aguento tanta pressão, sobretudo porque cada vez odeio mais a ideia de ser médica. Tenho horror à morte, à doença, até ao sangue. Detesto o cheiro a medicamentos. Como é que eu posso ser médica assim?"
"Um médico não é um Deus. As pessoas morrem. Quando te morre algum doente, consegues comer, divertir-te... namorar?"
"- O que eu não quero é ir para Medicina.
- O que é que te fez mudar de ideias?
- Pai, eu odeio o sangue, os hospitais, a morte...
- Pois, mas isso é uma questão de hábito... Eu também tive algumas dúvidas. Olha, uma pessoa habitua-se de tal maneira que o hospital acaba por ser um vício.
- Mas os vícios são maus, não são, pai?
Ele sorriu à pergunta:
- Que queres dizer com isso, que não sou bom médico?
-Não. Tu sabes que és um excelente cirurgião. Mas, se pensares bem, vais concordar que tu e a mãe se separaram porque nunca estavam juntos e, na realidade, ainda hoje mal se conhecem. Que desde aí não consegues namorar com a mesma mulher mais do que uns meses. E são sempre elas que se cansam de esperar por ti. São sempre elas que te deixam, não é pai? Nenhuma mulher aguenta ser sistematicamente esquecida e posta sempre a seguir à profissão. Não te sentes só? Tu nem sequer tens tempo para viver a tua vida! Pai, eu quero viver, quero fazer aquilo de que gosto!
O Dr. Cerqueira levantou-se, coçou a cabeça. Não estava a gostar nada do rumo que as coisas estavam a seguir. Estava a tentar chamar a filha à razão e afinal ele é que estava a ser o alvo das atenções. Por isso apressou-se a mudar o rumo à conversa.
- Ser médico exige efectivamente sacrifícios. Mas eu sei que tu és capaz de os fazer e de seres uma óptima profissional. Assusta-te o trabalho que tens pela frente?
- Não pai, não se trata de ter medo ao trabalho. Eu não tenho vocação para ser médica. Toda a vida pensei que ia ser médica, porque toda a vida vivi rodeada por médicos, porque cá em casa só se falava em Medicina e porque sempre consideraram como um dado adquirido que eu viesse também a ser médica. Acabei por me convencer que era isso que eu ia ser. Mas nunca me perguntaram se de facto eu queria seguir Medicina."
Anabela Mimoso in Parabéns, caloira!