Para sonhadores... Deixem-se levar... O blog mudou de cores, mas os sonhos são os mesmos...

13
Ago 09

 

Procurava concentrar-se no belo conto de fadas que segurava timidamente entre as mãos. Um clássico. A princesa aprisionada por uma bruxa maléfica. O príncipe, esbelto e corajoso, que parte sem hesitar para a resgatar.

Continuamente os olhos fugiam do livro para a realidade do quarto, que as nove horas banhavam de um tom sombrio. Na pequena mesinha junto à cama, uma foto de tempos talvez mais felizes. Ou apenas o rosto da inconsciência própria dos três anos... Não sabia. Agora, sete anos mais velha, apenas sabia que não queria que ele chegasse. Aquele estranho. Não já. Não agora. Talvez nunca mais!

E se, por um lado, eram pensamentos libertadores, por outro, eram tremendamente cruéis e punidores. Sentia-se horrível por alojá-los na sua mente, por alimentá-los. Um verdadeiro monstro. Afinal, a culpada de tudo era ela.

Olhando a janela percebia-se presa no seu quarto, na sua casa, no seu mundo. Impiedoso. Será que o seu príncipe chegaria algum dia? Capaz de a levar para longe de tudo e todos? Para longe dele.

E foi então que ouviu a porta bater. Sabia que não era o seu príncipe, afinal os passos etéreos deste contrastavam com a rudeza dos passos que percorriam a casa. Passos e mais passos. Angustiantes. Dolorosos. O subir das escadas. E o derradeiro abrir da sua porta.

O pai entrou. Uma mistura de emoções golpearam-na com uma força dilacerante - o nojo, o medo, a culpa. E o horrível hálito a álcool. O lascivo sorriso do pai. O olhar possesso.

Percebeu que chegara o momento de desaparecer. Foi então que se encolheu ainda mais entre os lençóis, fechou os olhos e respirou fundo. E rogou que o seu príncipe chegasse para a salvar.

publicado por Vânia Caldeira às 21:33
tags:

14
Ago 08

 

Olho-te nessa cama a que me habituei, a que te habituaste... Curioso como as paredes brancas e austeras, os corredores estreitos de um hospital nos podem parecer tão familiares. Como podem ser quase a nossa casa. Como os diversos profissionais de saúde que nele desfilam, médicos dedicados, enfermeiros atarefados ou auxiliares apressados podem ser quase como família ou amigos. Tudo uma questão de hábito. O tempo como motivo.

Passaste aqui demasiado tempo. Os dias arrastam-se e vêem-te morrer lentamente. Obrigam-me a ver-te morrer lentamente, espectadora forçada a este teatro da degradação humana. És cada vez mais incapaz, mais limitada, cada vez menos gente. Queria despedir-me já de ti porque receio que amanhã, quando às 15h como sempre cá voltar, já cá não estejas. Porque vivo e me debato com essa constante incerteza. O medo do que fica por dizer. Mas, sobretudo, a saudade antecipada da tua ausência mãe. Minha mãe. As tardes no hospital repetem-se e, perante a tua imobilidade, o silêncio a que te confinas, eu dedico-me apenas a olhar-te nessa paz enganadora. Reconstruo os nossos momentos de alegria e felicidade. Sim, nesse tempo longínquo em que nos julgávamos inatingíveis. Nessa época em que o nosso amor parecia capaz de tudo, qual barreira protectora que nos distancia de todos os males deste mundo. Recordo-me que quando falávamos uma com a outra, como amigas que sempre fomos, quando nos abríamos verdadeiramente, confessávamos os nossos segredos, revelávamos os nossos pecados (ou seria ao contrário? confessar pecados e revelar segredos parece fazer mais sentido, agora que já nada tem sentido!) todo o restante mundo deixava de existir. Éramos. Nós. As duas, apenas as duas. Mutuamente suficientes. Encontrávamos força uma na outra. Só queria me envolvesses outra vez nesses teus braços, eterno refúgio... e que me fizesses de novo menina, tua princesa.

Hoje, porém, o mais próximo que existe disso é este quarto. Quando fecho a porta deste fúnebre quarto. Ficamos as duas. Sós. Ou nem por isso, já que existe sempre um ou outro paciente temporariamente deixado nas camas ao lado. Um ou outro gemido que interrompe os nossos actuais (cada vez mais curtos e menos frequentes) diálogos. Ou serão monólogos? Quando deixaste de falar? Quando me deixaste a falar sozinha? Não sei, ou não quero saber.

A lei da vida esclarece que "é assim mesmo". Os pais devem gerar os seus filhos, vê-los crescer, criá-los e educá-los, dar-lhe as asas e deixá-los voar. E, depois, no fim, devem partir primeiro que as suas crias. Os mais velhos devem morrer primeiro. E devemos estar preparados para isso. Devemos encontrar outras pessoas na nossa vida, ser felizes ao seu lado, encontrar outros motivos para viver. Encontrei essas pessoas, creio que tive sorte. Porém, com o passar do tempo, ou com o apertar dele (creio que é mais apropriado), angustia-me a certeza derradeira: nada nem ninguém poderá substituir-te. A tua partida deixará uma enorme fenda, uma ferida difícil de sarar. Um vazio. Vácuo. Ausência.

O que me restará? Tentar cobri-lo, tapá-lo, escondê-lo, fazê-lo curar e fechar. Sem sucesso na melhor das hipóteses.

A enfermeira abre de rompante a porta e volta a implicar com o meu (mau) hábito de a fechar. Ignoro-a. Pouco me importa aquilo que diz. Queria que tu dissesses qualquer coisa, mãe. Que fosse teu o ruído que sai da boca daquela farda azul e branca. Queria que fossem tuas as palavras. E não são. Insistem em não ser tuas.

Olho o relógio e percebo que são horas. A visita terminou. Mais uma. Como as outras. Levanto-me do banco que já tem a minha forma, dou-te um longo beijo e dirijo-te um último olhar, para recordar-te eternamente. Saio com a mesma incerteza de todos os dias. E sei que amanhã voltarei, percorrerei os velhos corredores apressadamente até chegar ao teu quarto... abrirei, entre o ansiosa e o hesitante, a porta com medo. Medo de que tu possas simplesmente já não lá estar. Até amanhã, mãe.

 

P.S. Depois de todas as questões levantadas por este post, achei prudente esclarecer que o mesmo não passa de pura ficção (felizmente!), como tantos outros que aqui publico. Agradeço toda a preocupação e apoio que me foram dirigidos (tanto por amigos, como por leitores) e lamento a confusão causada.
Cumprimentos, Vânia Caldeira

publicado por Vânia Caldeira às 12:41

Dezembro 2011
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3

4
5
6
7
8
9
10

11
12
13
14
15
16
17

18
19
20
21
22
23
24

25
26
27
28
29
30


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

mais sobre mim
pesquisar
 
blogs SAPO