Para sonhadores... Deixem-se levar... O blog mudou de cores, mas os sonhos são os mesmos...

07
Set 09

 

Desde ontem que tudo estava estranho lá em casa. A mãe não voltara do trabalho e o pai dissera-lhe que surgira uma cirurgia urgente no hospital e que ela acabara por ser necessária. Fora dormir sentindo saudade das doces palavras da mãe, quando esta lhe lia uma história todas as noites, e lhe dava aquele mágico beijo de bons sonhos.

Mas hoje a casa estava ainda mais esquisita. Não só a mãe continuava ausente, como havia um ambiente estranho. A família viera toda para uma não planeada visita. Porém, vagueavam pela casa como zombies, de rostos tristes e olhares vazios. Ausentes. Como a sua mãe. Onde andaria ela, que nunca mais voltava para lhe explicar o que se passava?

A avó esboçou-lhe um doloroso sorriso e ele conseguiu ver os seus velhos olhos, datados pelas duras rugas,  vermelhos e doridos, como daquela vez em que a Joana lhe partiu o seu brinquedo favorito. E ele chorou e chorou. No fim, os seus olhos também estavam assim.

Ainda por cima tinham todos decidido vestir-se de preto. Chegava a meter medo.

Farto de se sentir posto de parte, procurou o pai pelos corredores da casa. Quando o encontrou, parecia anos mais velho. Uma expressão carregada de algo que ele não sabia bem reconhecer. Mas que doía e muito.

O pai olhou-o com toda a sua ternura e disse-lhe que a mãe tinha ido para o céu. "Então e a que horas volta?", ouviu-se ecoar pela casa.

O pai engoliu em seco. Não sabia o que dizer ao filho, como o dizer. Estas coisas simplesmente não deviam acontecer.

Ganhou coragem, emoldurou o pequeno e delicado rosto do filho entre as suas mãos, e explicou-lhe que a mãe não voltava mais, tinha partido para sempre.

O menino de lindos olhos verdes e cabelos loiros, cheios de sonhos, voltou ao hall de entrada. Pensou no que o pai lhe dissera e percebeu que ele estava enganado, como daquela vez em que a mãe lhe pedira para trazer queijo e ele trouxera fiambre. Típico do pai. Como é que a mãe se podia ir embora de vez? Quem é que tomaria conta da casa, lhe diria o que vestir, lhe faria o almoço ou ajudaria nos trabalhos de casa? E como é que o hospital sobreviveria sem ela? Não podia ser. Afinal ela despedira-se dele, no dia anterior, com o beijo de sempre e a pressa do costume para ir trabalhar. E tinham combinado ir ao jardim botânico no próximo fim-de-semana. Não lhe disse que não voltava. Não o avisou que era para sempre...

Certo de que o pai estava enganado, ele dirigiu-se para a porta. Sentou-se num dos degraus da entrada e limitou-se a esperar que a mãe simplesmente voltasse para casa.

publicado por Vânia Caldeira às 19:33
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13
Dez 06

 

Todo o santo dia Jorge detinha-se na montra diáfana da sua loja preferida. Pousava a mochila e os manuais que lhe auguravam uma escoliose precoce. Seguia-se um cigarro e o Ipod para lá dos limites do suportável. Qualquer coisa entre os Korn e os Marilyn Manson, que os decibéis existem para calar o silêncio da alma. Por fim, repousava os olhos na primeira prenda de Natal que iria ser realmente sua. Dele e apenas dele. Este ano tinha decidido oferecer-se um presente – com notas tão boas e sem faltas injustificadas, bem merecia uma recompensa. Algo de que gostasse realmente. Nada daqueles pijamas, camisolas, cahecóis e gorros de lã grossa com que a família declarava o seu amor incondicional.
Repetiu o ritual matematicamente até à véspera da Consoada. Penou durante um mês, fez uns biscates e poupou na mesada. Afinal, há sacrifícios que valem a pena. Os pais estranharam a princípio a férrea disciplina, mas acabaram por convencer-se de que o filho tinha, finalmente, entrado na linha. Com notas destas, tinha-se-lhe metido algum juízo na cabeça. Devia ser da nova namorada.
Chegou o dia mais aguardado. Um nervoso miudinho enrugava-lhe a testa adolescente e salientava o acne, esse cancro juvenil sem cura nem medicina à vista. Mas Jorge estava feito um homem. Depois de tanto trabalho, com mealheiro próprio e sem calotes, dava provas de autonomia e independência.
- Quanto é?
- São 250 euros.
- Aqui está.
- Sabes como é que funciona?
- Claro. Acha que eu sou algum miúdo?
- Claro que não. Diverte-te.
Guardou o embrulho na mochila com devoção religiosa. Sentia-se o ser humano mais feliz do Mundo e decidiu partilhar o júbilo que lhe transbordava no coração. Antes de se encontrar com a namorada, no parque municipal, ainda ajudou uma jovem mãe, ou talvez mãe jovem, com o seu carrinho de bebé, a descer a escadaria do shopping.
- Olhe que está frio. É melhor tapá-lo.
- Ai, muito obrigado. És muito simpático.
- Obrigado. Feliz Natal.
- Feliz Natal para ti também.

Pais, tios, primos, irmãos, sobrinhos. A mesa farta irá daí a nada a ser tomada de assalto como uma companhia cercada num teatro de guerra. Alinham-se estratégias para chegar ao arroz-doce mais distante. Escondem-se as filhoz debaixo das pilhas de guardanapos. Debulha-se a dose à velocidade da luz não vá o vizinho do lado ser mais ágil com os nervos da boca. São muitos os comensais, e ainda mais as iguarias, mas ninguém quer ficar a perder. Excepto Jorge, que não repete o bacalhau e deixa a meio a fatia de bolo-rei. O primo interrompe-lhe a refeição. E, o que é mil vezes pior, desalinha-lhe a lógica dos pensamentos.
- Então, os teus pais sempre te vão dar a Playstation Z?
- Não sei…
- Isso era mesmo fixe. Tenho ali o Total Combat 4 e podíamos jogar quando eles forem todos para a Missa do Galo.
- Iá, desse ver mesmo fixe – retorquiu com enfado e sem nesga de convicção.
Jorge não presta atenção. Só lhe interessa o presente escondido na gaveta das boxers. Olha para o relógio e conta penosamente todos os segundos.

Faltam dois minutos para a meia-noite. Finalmente, o pai, figura tutelar da família, anuncia solenemente a troca de presentes. Jorge pede servilmente autorização para ir ao quarto buscar uma prenda. São desembrulhadas piadas de caserna, episódios caricatos e memórias festivas com cada um dos pacotes. Risos, trocadilhos e chalaças de barriga cheia. Jorge entra no quarto e abre a gaveta
- Então, Jorge, nunca mais vens? – grita o pai da sala enquanto enche o copo.
- Vou já, é só um bocadinho.
Bang-Bang.
Um som estridente interrompe abruptamente a folia na sala de jantar. Lucinha, a irmã mais nova de Jorge, que tinha ido à casa de banho, entra no quarto e encontra um bilhete a vagar numa poça de sangue. “Feliz Natal”.

publicado por Vânia Caldeira às 08:29
música: http://muitobarulho.wordpress.com/2006/11/22/conto-de-natal/

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